Mostra com mais de 200 obras de 80 artistas negros entra no circuito de visitação, a partir de 19 de julho, no Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira, em Salvador
É possível subverter a lógica do tempo, já que para a filosofia e as cosmovisões africanas, ele é recorrente, sagrado e abundante, tal qual a representação horizontal do algarismo “8”, o resultado da soma dos números que formam o ano de 2024. E, com isso, se debruçar sobre ações determinadas, como retornar às origens. Essa é a imersão proposta pela exposição inédita “Raízes: Começo, Meio e Começo”, que entra no circuito de visitação a partir de 19 de julho, às 18h, no Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira, em Salvador.
A exposição é dividida em cinco eixos temáticos distribuídos em dois andares do Muncab: Origens, Sagrado, Ruas, Afrofuturismo e Bembé do Mercado. Todo o espaço reúne trabalhos de mais de 80 artistas afro-descendentes, entre eles pinturas do sambista Heitor dos Prazeres (Rio de Janeiro, 1898-1966); esculturas do museólogo Emanoel Araújo (Bahia, 1940-2022); fotografias da carioca Lita Cerqueira; e esculturas do pintor baiano Juarez Paraíso. Além de criações da Angola, do Senegal, da Guiné e do Congo. São mais de 200 obras que enaltecem as tecnologias originárias das matrizes africanas, que moldaram a construção identitária do Brasil, também decodificadas na mostra em instalações, performances e videoartes.
Dar tempo ao tempo
Na cultura iorubá, introduzida no Brasil a partir do século XVIII pelos povos originários da Nigéria, do Daomé e do Togo, a temporalidade é recorrente, com eventos e padrões que se repetem e renovam, distante da linearidade ocidental irreversível do início, meio e fim e da cronologia sequencial do ano, do mês e do dia. Ciclos naturais também demarcam o tempo na cosmovisão africana, não somente os relógios e calendários. É o caso das colheitas agrícolas, uma necessidade coletiva e biológica pela alimentação, atreladas às estações climáticas e às fases da lua, submetidas às bençãos do sagrado.
Observa-se, portanto, que os acontecimentos se desenvolvem ao mesmo tempo em espaços paralelos, na dimensão dos ancestrais e dos vivos. Existe uma contínua conexão do presente e do futuro com os antepassados, o que explica a importância de se conectar à sabedoria ancestral para a movimentação entre Òrun, o universo espiritual paralelo ao Àiyé, o mundo físico, em prol da evolução humana. Nascimentos, ritos de passagem e mortes são ciclos de continuidade e não perdas, lutos ou eventos isolados.
“‘Raízes: Começo, Meio e Começo’ entrelaça a circularidade do tempo, para refletir sobre as tecnologias ancestrais. Presente, futuro e passado formam as raízes de um grande baobá. Para algumas etnias originárias africanas, essa espécie vegetal de grande porte é a árvore da vida. Reconhecemos a diáspora afro-brasileira como uma das ramificações dessa raiz ancestral”, explica a curadora Jamile Coelho, que também é diretora do Muncab, sobre a pesquisa que fundamentou a exposição.
Os símbolos ideográficos Adinkra dos povos akan, que habitam as regiões da Costa do Marfim e de Gana, também capturam a atemporalidade do projeto expográfico da cenógrafa Gisele de Paula e da identidade visual do urbanista M.Dias Preto. Sankofa, representado por um pássaro com a cabeça para trás, traduz que nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo que ficou no passado. “Os visitantes são convidados a refletirem sobre a diáspora afro-ameríndia e a continuidade das tradições ancestrais, baseando-se na experiência visual como um testemunho contemporâneo”, avalia Jil Soares, que fecha a dupla de curadoria da mostra.
Tecnologias ancestrais
O “itã”, como os contos são chamados na linguagem iorubá, diz que as raízes da árvore “Iroko”são tão profundas, que ao serem plantadas no continente africano, atravessaram o oceano rumo às Américas. O que demonstra a potência do povo negro, que mesmo sequestrado da África tem influência em todo o mundo. “’Raízes: Começo, Meio e Começo’ é uma jornada imersiva para contemplar esse berço civilizatório sob a perspectiva das manifestações artísticas, dos rituais religiosos e do modo de organização social e política, transmitidos entre gerações”, acrescenta Jil Soares.
O núcleo “Origens” parte do princípio de tudo. O “Iroko” toma conta desse ambiente expositivo para simbolizar o encontro entre as culturas dos continentes africano e americano. A cidade de Salvador é descrita como o útero da raça negra na diáspora. Narrativas visuais guiam o público pela travessia identitária das águas oceânicas que moldaram a formação dos quilombos a partir dos navios negreiros. Já o território “Sagrado” aprofunda as tradições espirituais. Mesmo dispersas, elas foram capazes de reatualizar e ritualizar suas conexões existenciais de pertencimento, por meio do culto aos orixás, nkisis e voduns juntados aos caboclos encantados da terra. Artefatos, músicas e danças celebram a força dos espíritos.
O espaço “Ruas” abraça o “pretuguês,” neologismo que define o simbólico universo linguístico, artístico, gastronômico, político, social e cultural enraizado nas matrizes africanas. A paisagem urbana das cidades de Salvador, Luanda, Montevidéu, Porto Novo, Havana e Lagos carregam semelhanças dessa identidade sinônimo da resistência. O ambiente “Afroturismo” promove o encontro entre ficção científica, tecnologia, realismo fantástico e mitologia para retratar a vida plena da população negra nas artes visuais e na moda. Desta forma, recupera a auto-estima de povos historicamente subalternizados, para projetar futuros libertários por meio da inserção da estética negra nas artes consideradas contemporâneas.
O eixo “Bembé do Mercado” registra os patrimônios culturais imateriais expressos na musicalidade, na língua, nos versos, nos sotaques e nos saberes sociais. A cidade de Santo Amaro, no Recôncavo da Bahia tornou-se palco do maior culto do candomblé de rua do Brasil, tendo sido realizado pela primeira vez em 1889 em celebração à Abolição da Escravatura. Um símbolo da manifestão da
fé dos povos negros. “Raízes: Começo, Meio e Começo” também reverencia o princípio dinâmico de todas as coisas de Exu, o orixá regente de 2024. A exposição é uma produção do Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira em parceria com a RCD Produção de Arte.
Muncab
O Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira é dedicado à preservação, documentação, difusão e valorização das culturas de matrizes africanas, que influenciam o Brasil e as Américas. O acervo permanente é composto por mais de 400 obras de arte raras e históricas, modernas e contemporâneas de artistas negros. São pinturas, esculturas, gravuras, fotografias, jóias, arte sacra e documentos que testemunham as culturas africanas nas artes visuais. Os principais artistas que fazem parte do acervo são a Yêdamaria (Bahia, 1932-2016), Mestre Didi (Bahia, 1917-2013), Rubem Valentim (Bahia, 1922-1991), Emanoel Araújo (Bahia, 1940-2022) e Agnaldo dos Santos (Bahia, 1926-1962).
O equipamento público já recebeu mais de 130 mil visitantes desde a sua reinauguração ao público em novembro de 2023 em Salvador, com a itinerância da megaexposição “Um Defeito de Cor” e a mostra internacional “Reverberações: refletindo a impressão da memória africana”. “A primeira exposição concebida pela equipe curatorial do Muncab após sua reabertura assinala um momento significativo na trajetória da difusão da cultura afro-diaspórica em Salvador. Parte do compromisso de reflorestar imaginários como também faz uma provocação sobre o enraizamento das artes visuais”, comemora Cintia Maria, diretora do Muncab.
Serviço:
Exposição – “Raízes: Começo, Meio e Começo”
Local: Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab)
Endereço: Rua das Vassouras, 25, Centro Histórico de Salvador, Bahia
Período: 19 de julho de 2024 a 9 de março de 2025
Horário: Terça a domingo, das 10h às 17h (acesso até 16h30)
Ingressos: R$ 20,00 (inteira) e R$ 10,00 (meia)
Gratuidade: Quartas-feiras e domingos
Mais informações: (71) 3017-6722 e museuafrobrasileiro.com.br
Classificação indicativa: Livre